O problema não é José Mayer

Ou, bom… o problema não é só o José Mayer, precisamos admitir.


Vamos do começo.

Se você mora no Brasil e teve acesso à internet nos últimos dias, é muito provável que já esteja sabendo do caso de assédio envolvendo o ator José Mayer e a figurinista Susllem Tonani. Os dois são colegas na mesma emissora de TV. José vinha assediando Susllem há alguns meses, a situação chegando ao limite quando ele passa a mão na genitália dela. Na frente das colegas. Que riram, acharam graça da “brincadeira”. Dias depois, no set de filmagem, José Mayer grita com ela, chamando-a de vaca.

Susllem Tonani, após tanta pressão, denuncia o caso através do #agoraéquesãoelas, que é uma plataforma dedicada a textos de mulheres no portal da Folha de São Paulo.

O ator a princípio, nega e se justifica: não teria sido ele, mas sim o seu personagem quem tivera esse comportamento machista e abusivo com a colega.

Para encerrar isso tudo, uma cínica (e necessária) carta pública de desculpas.


Talvez isso pudesse soar engraçado se não fosse trágico, se esse roteiro não fosse o mesmo seguido por praticamente todos os homens quando “erram”. E foi isso que me fez ver que eu precisava escrever sobre. Não é (apenas) sobre José Mayer, é sobre a forma como os homens tem sido ensinados a nos tratar , a tratar esses assuntos — e sobre a incapacidade de perceber que este roteiro precisa urgentemente ser reescrito.

Um homem faz uma merda. É abusivo, agride, trai, não importa. Faz uma merda. Eu não estou mais falando do José Mayer, eu estou falando de você. E do seu amigo também, ali do lado. Qual é o passo seguinte, vocês sabem? Como deve se portar um homem que comete “um erro”?
Não respondam para mim, respondam cada um para si mesmo: como vocês aprenderam que um homem deve se portar quando flagrado em erro?
Isso mesmo. “Negue enquanto puder”. É assim que vocês são ensinados, neguem o quanto puderem, neguem enquanto puderem.
“Esta mulher só pode ser doida.” “Não fui eu, foi o Tião Bezerra”.
Vale qualquer coisa, mas neguem enquanto puderem.

Essa é a fase do gaslighting, do abuso psicológico. Gaslighting é quando um homem quer convencer a uma mulher, e às vezes também a todas as pessoas em volta dela, de que ela está louca, por que ela o está acusando de algo que ele nunca faria (mas fez), ela só pode estar louca. Sugiro uma pesquisa rápida no Google para que vocês possam entender melhor do que eu estou falando (caso ainda não o tenham feito).

A fase seguinte, quando nada mais pode ser feito para esconder a merda, é óbvia: um pedido de desculpas. Reconhece o erro humildemente, falando do SEU sofrimento sobre isso. E nós, mulheres, nós precisamos ser compreensivas.

Vejam bem: eu não estou reclamando sobre José Mayer ter pedido desculpas. É triste, mas nós temos que reconhecer que uma carta pública e cínica de desculpas é uma grande vitória nossa, é uma grande vitória do feminismo das redes, do feminismo das hashtags, do escracho público. Nós, que somos violentadas de algum modo todos os dias, precisamos reconhecer isso como uma grande vitória: um cínico pedido de desculpas públicas vindo de um homem abusador.

Podemos ficar felizes? Bom, fiquemos… mas me desculpem fazer hoje novamente A Chata: não podemos nos dar por satisfeitas. Por que isso já não é mais apenas sobre o ator, isso é sobre o modo como os meninos tem sido historicamente educados a se tornar homens. É sobre as masculinidades tóxicas, e o que elas vem nos causando. Não só às mulheres. Eu custo a acreditar que um homem, uma pessoa, analise esse tipo de comportamento e se sinta bem sobre ele.


Vamos analisar o pedido de desculpas? Frase a frase?
E tudo bem se você quiser parar de me ler por aqui, mas eu te peço que continue.

O desconforto que eu senti ao ler foi imenso, e eu compartilhei este desconforto com algumas amigas. Muitas delas também sentiram o mesmo desconforto.

Então, eu compartilhei com mais e mais amigas. E o desconforto permanecia, e mais de nós ficávamos desconfortáveis. Por que todas, absolutamente todas as mulheres com quem falei um tempinho sobre isso já passaram por situações semelhantes ao menos uma vez em suas vidas. Já conhecem o roteiro, e já saíram machucadas de jogos desse tipo. Por que é o mesmo roteiro de sempre: ao abuso, segue o gaslighting. Recorrente, insistente, violento até. Negar até o fim, negar até o fim, nós somos as loucas. E quando não há mais jeito de negar, bom… nós é que precisamos compreender, vocês estão arrependidos, vocês estão aprendendo, e estão sofrendo muito e se sacrificando muito para aprender a respeitar as mulheres… A nós, mulheres, cabe sempre a tarefa de compreender e perdoar.

Novamente, e antes de lermos a carta, eu vou dizer: eu não estou reclamando que José Mayer tenha pedido desculpas. Eu considero, não sem muita tristeza no coração, que essa tenha sido mesmo uma grande vitória do feminismo: que um homem famoso reconheça publicamente que errou e peça desculpas, que a rede de TV onde ele trabalha precise veicular esse pedido de desculpas, que esse homem chegue a ser afastado do trabalho. Lembrem disso, pra não me acusarem de punitivista depois. Eu não quero que ele seja preso, não quero que ele tenha a sua vida destruída, eu não quero que ele não possa mais sair às ruas. Eu só quero seguir lutando por um mundo em que nós, mulheres, também possamos sair às ruas.

Vamos lá.


A carta de desculpas de José Mayer

“Eu errei.
Errei no que fiz, no que falei, e no que pensava.
A atitude correta é pedir desculpas. Mas isso só não basta. É preciso um reconhecimento público que faço agora.  Mesmo não tendo tido a intenção de ofender, agredir ou desrespeitar, admito que minhas brincadeiras de cunho machista ultrapassaram os limites do respeito com que devo tratar minhas colegas. Sou responsável pelo que faço.

Me deixa respirar e pensar. Então uma pessoa que assedia uma colega insistentemente, essa pessoa me diz que não teve a intenção de ofendê-la, agredi-la e desrespeitá-la. E é verdade, eu acredito, ele talvez não tenha tido a intenção de ofendê-la, agredi-la e desrespeitá-la. Os homens, quando nos elogiam a beleza e nunca o nosso trabalho, na imensa maioria das vezes não tem a consciência de que isso em si é uma agressão, é invasivo, é desagradável mesmo na maioria das vezes. Eu, que há muitos anos não trabalho em escritório, já precisei ouvir de alguns clientes sobre suas colegas e secretárias que é isso mesmo: a função da mulher no mundo do trabalho é a de enfeitar. E nós, se estamos lá para enfeitar, por que é que não podemos ser elogiadas, assediadas, tocadas? Então, eu acredito: José Mayer talvez não tenha tido a intenção de ofender, agredir ou desrespeitar, talvez nenhum homem tenha a intenção de ofender, agredir ou desrespeitar uma mulher quando, invadindo a sua intimidade, elogia a sua beleza e demonstra a sua intenção de avançar. Vejam em que mundo vivemos: os homens só recentemente descobriram que fazer sexo com uma mulher que bebeu a ponto de estar insconsciente é estupro, mesmo que essa mulher seja sua namorada ou esposa. E nós, nos sentindo ofendidas por “elogios”…

Tenho amigas, tenho mulher e filha, e asseguro que de forma alguma tenho a intenção de tratar qualquer mulher com desrespeito; não me sinto superior a ninguém, não sou.

Aqui, eu fico pensando no imenso constrangimento pelo qual talvez esteja passando a família. E em especial a esposa, aquela que, por ser ele um cara de outra geração, quem sabe pudesse ter aprendido a respeitar. Mas não: não é relevante aos homens o que a mulher que ficou em casa pensa. “O que os olhos não veem, o coração não sente”, diria o meu falecido avô. O que nós esperamos, enquanto sociedade evoluída e civilizada, é que ela o perdoe por mais este pequeno deslize.

Tristemente, sou sim fruto de uma geração que aprendeu, erradamente, que atitudes machistas, invasivas e abusivas podem ser disfarçadas de brincadeiras ou piadas. Não podem. Não são.

Tristemente, meu caro, preciso te contar (embora eu acredite que você já saiba disso): as novas gerações estão sendo educadas deste mesmo modo, e é sobre isso que eu estou falando aqui, é sobre isso que eu quero falar. Sobre a necessidade urgente de repensarmos a educação dos garotos, o que estamos passando a eles. No inverno passado eu assisti, junto com Clara Averbuck, o documentário The Mask you Live In. Recomendo a todas as pessoas, você o encontra na Netflix. Pais, mães, educadores. Se você não chegar ao fim do documentário com a certeza de que algo precisa ser feito sobre, eu terei medo de você.

Aprendi nos últimos dias o que levei 60 anos sem aprender. O mundo mudou. E isso é bom. Eu preciso e quero mudar junto com ele.

Eu acreditaria neste trecho apenas no caso de José Mayer ter passado as últimas décadas em coma, ou numa caverna. Em especial no meio onde ele atua, cercado de pessoas jovens, um meio que não apenas absorve tendências mas as dita, alguém me dizer que não viu o mundo mudar me choca. Ele talvez não tenha desejado ver o mundo mudar, e isso é outra coisa.

Este é o meu exercício. Este é o meu compromisso. Isso é o que eu aprendi.

Desculpa, eu não vi aprendizado. Vi um homem forçado a se desculpar por medo da opinião pública. Ok, o feminismo venceu.

A única coisa que posso pedir a Susllen, às minhas colegas e a toda a sociedade é o entendimento deste meu movimento de mudança.

Cá está a face mais cruel da educação de meninos e meninas, das diferenças na educação entre meninos e meninas. Nós somos ensinadas a vida toda à meiguice, à tolerância, a compreender, a ajudar. Não raro é exatamente isso o que nos leva à morte. Sempre é isso o que nos leva a aceitar as coisas como são. Nós precisamos mesmo ajudar e compreender o nosso abusador? Não poderia ele mesmo segurar essa barra sozinho?

Espero que este meu reconhecimento público sirva para alertar a tantas pessoas da mesma geração que eu, aos que pensavam da mesma forma que eu, aos que agiam da mesma forma que eu, que os leve a refletir e os incentive também a mudar.

Sim, eu acredito que muitos homens passarão a ter mais cuidado a partir de agora. Mas só por que quero acreditar mesmo. E também por que acredito: a exposição desagrada e assusta. Talvez isso seja um bom incentivo.

Eu estou vivendo a dolorosa necessidade desta mudança. Dolorosa, mas necessária.

O homem que sofre. A fase final de toda a farsa, o homem que sofre. Ele sofre mais que você, ele sofre mais que todo mundo, ele está aprendendo de modo duro, ele está sofrendo. Isso é nobre. Ele fez a merda, mas o sofrimento dele é o que há de relevante nisso tudo.

O que posso assegurar é que o José Mayer, homem, ator, pai, filho, marido, colega que surge hoje é, sem dúvida, muito melhor.

É muito complicado para qualquer uma de nós acreditar que uma pessoa mude de um dia para o outro, mas vamos lá: eu acredito que, se levarmos a sério essas questões, se compreendermos (e isso passa por reconhecerem, homens que são, as suas falhas, reconhecerem que este mesmo roteiro está presente na educação dos homens há séculos, e desejarem mesmo romper com isso, eu acredito na possibilidade de alguma mudança). Será que um dia os homens deixarão de ser ensinados a “negar até o final”, será que um dia assistiremos ao fim do gaslighting e todas essas práticas horrorosas? Eu espero estar viva para ver.

Ele assina:

José Mayer”

Me desculpem o desabafo, mas o problema não é o José Mayer. São as masculinidades tóxicas. Não estamos sobrevivendo a isso.

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